(Santa Sangre (1989), de Alejandro Jodorowsky, um dos meus filmes favoritos.)
Com a passagem do tempo, me forcei a arquivar a presença dolorosa que a falta do meu amigo me causava. Dividi as lembranças em pastinhas, ocupei uma gaveta inteira no depósito da memória, escolhi cuidadosamente as palavras-chaves “infância-Amparo-amor-saudade-pessoas-desaparecidas” e guardei o arquivo dentro da cabeça.
Na cidade nova, enquanto lutava com a sensação de não pertencimento, de solidão e de luto, tentando me reconhecer na figura melancólica e insegura que eu tinha me tornado (tão diferente da menina selvagem, confiante e alegre que eu era), sempre que estava infeliz, com saudades dos amigos ou odiando o lugar gelado e cinza onde agora vivia, eu dava uma espiadinha naquela gaveta. Na adolescência, procurei nas caixas de fotos até achar os poucos registros que tinha de Paulo; colei no mural do meu quarto, prendi com clipes no diário, queria que se tornasse parte do meu cotidiano, que estivesse à vista, ao alcance da mão.
Enquanto isso, o tempo foi cavando seu caminho sem olhar para trás.
Mesmo assim, de forma quase inconsciente, automática, continuei atenta aos rostos na multidão. Procurei meu amigo em todas as salas de aula em que entrei, em todas as viagens que fiz, nas folhas de chamada que preenchi, na lista de aprovados do vestibular. Busquei seu nome no ICQ e no Orkut. Mas eu não sabia seu sobrenome, e sempre pareceu haver, ao menos, um milhão de Paulos Robertos no mundo. Então, no primeiro dia de aulas da faculdade de Letras, entrei na sala e procurei uma última vez. Ele não estava lá. Em vez disso, encontrei um moço bonito e mal-humorado, de sobrancelhas grossas e o rosto inchado por ter removido o siso no dia anterior. Naquele dia, tranquei a porta do depósito da memória, descobri uma sala nova, varri o chão, pintei as paredes de cores vibrantes, enchi o cômodo de estantes abertas, de vasos de plantas, e fui encaixando, uma por uma, as lembranças que eu construiria com o homem que hoje é meu marido.
***
Eu ainda tinha o hábito de procurar por meu amigo perdido nas redes sociais vez ou outra. Isso acontecia sempre que conversava muito com os antigos amigos de escola, com quem havia retomado contato desde a época do Orkut. A cada dois anos, pelo menos, perguntava, “E aí, teve notícias do Paulo?”, e meus amigos só faltavam revirar os olhos e gritar, “DE NOVO ISSO?”, mas respondiam pacientemente que não, nunca mais tinham ouvido falar nele. (Obrigada pela delicadeza, gente. Vocês merecem o céu.)
Voltei a Amparo algumas vezes. Em uma delas, levei meu marido para percorrer os caminhos da minha infância, conhecer os lugares que serviram de base para a maioria dos meus contos, comer pastel com caldo de cana às margens do rio Camanducaia, fazer o amor enquanto enxergávamos os telhados dos casarões históricos pela janela; em outra, fui sozinha, encontrei os amigos, comi hambúrguer de siri numa lanchonete chamada O Siri Cascudo (juro!), sentei tarde da noite na praça da cidade com o caderno no colo explodindo de palavras (estava escrevendo um livro que acabou engavetado) e depois dormi num hotel, assombrada pelos fantasmas que se foram (e, inclusive, por um bem real que andou para lá e para cá no andar de cima, arrastando móveis a noite inteira).
Naquela noite tive um pesadelo. Como tenho um diário reservado somente para as inspirações sádicas do meu inconsciente autopunitivo, eu o anotei.
15 de janeiro de 2016
“Venha me encontrar”, diz meu amigo de infância, meu primeiro amor, a quem não vejo há dezessete anos, parado em frente à minha cama, vestido com uma capa preta de vampiro, os olhos pintados de marrom, a boca descorada. “Eu morri. Eu estou morto e você não me encontrou. Você não se lembra de mim. O tigre-siberiano não é mais o seu bicho favorito.”
Choro e agarro os lençóis. Consigo ver a luz do banheiro acesa. “Juro que eu tentei, mas você sumiu, ninguém se lembra de você, só eu. Você sumiu aos dez anos de idade. E eu não consegui te encontrar.”
“Você se esqueceu do meu nome completo. Você se esqueceu do meu rosto. Você se esqueceu do beijo que eu te dei na saída da escola, atrás das bananeiras. E agora eu estou morto e você não me encontrou.”
“Eu vou, eu vou. Eu prometo.”
Então, há um corte no sonho e estou na escola onde estudamos. Encontro nossos amigos, adultos solitários e tristes, nem mesmo simulacros das crianças felizes que tinham sido. “Nenhum Paulo estudou aqui”, eles dizem, e, assustada, vejo que ele não está nos registros escolares, nas fotos arquivadas, nem nas lembranças de festinhas e excursões de quase vinte anos atrás. O único rastro é uma mancha branca, incandescente, no canto direito de uma fotografia de turma.
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No dia seguinte, antes de ir embora, passo pela nossa velha escola. É um sábado e os portões estão fechados. O portão ainda é azul, os pinheiros ainda cobrem o chão de palitos marrons e pinhas secas. Tudo parece igual, mas eu estou mudada. Se meu inconsciente matou meu amigo, é porque realmente preciso enterrá-lo. Desisto da história e desisto de procurar. Passo a chave no arquivo da mente.
Meia década se passa.
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Ano passado comecei a escrever meu primeiro romance (que, se tudo correr como espero, será lançado logo mais pela Darkside Books), decidida a deixar os contos para lá e explorar um novo gênero narrativo. Criei minhas personagens e fui desenvolvendo suas características, suas idiossincrasias. Só mês passado descobri que uma delas era meu amigo. A descoberta me pegou de surpresa, trouxe consigo um sabor agridoce, uma impaciência, uma vontade de dizer para mim mesma: “Por que você não supera? Meu deus do céu!”. (Às vezes não sei se sou neurótica por ser escritora ou se é justamente por ser escritora que sou neurótica.)
Mas gostei tanto da personagem! Achei que se encaixava perfeitamente no que eu queria mostrar, por isso, buscando o máximo de verossimilhança — ou a vontade de me infligir sofrimento, quem sabe? — fui lá no meu velho depósito, destranquei a porta, tirei a poeira da gaveta, fucei em todos os arquivos. Tinha a sensação de estar em dois lugares ao mesmo tempo; digitando no computador e acessando as lembranças. Era como se movesse caixas, jogasse coisas fora, encontrasse detalhes novos, um caleidoscópio de memórias que já não sabia se eram inventadas ou realmente tinham acontecido. Fui montando meu personagem; mas ele tinha uma trajetória própria, vida própria, e foi se descolando da imagem que eu guardava do meu amigo. Quanto mais o personagem se afastava, mais a lembrança do meu amigo crescia, e senti um desejo imediato de escrever sobre ele — o amigo que, depois de duas décadas, de certa forma, também tinha se transformado em personagem. Tive a ideia de escrever essa Newsletter.
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Postei a primeira parte de “Venha me Encontrar” no dia primeiro de fevereiro, às oito da manhã. As pessoas gostaram, se comoveram, começaram a compartilhar o texto pelas redes. Acho que é um tema universal: todo mundo tem alguém que ficou perdido na boca faminta do passado. Fiquei muito feliz com a recepção, com a maneira como as pessoas se abrem e me deixam entrar e destruir o dia delas (risos), mas sem pretensão nenhuma de que viesse a ser qualquer coisa além de um desabafo — muito menos que funcionasse como uma espécie de invocação, de chamado, desse amigo que eu considerava perdido para sempre.
Algumas horas depois, pouco antes das duas da tarde, Nicollas, um dos meus melhores amigos, me mandou uma mensagem no Whatsapp:
“Viu, liguei na sua escola lá de Amparo. Pedi o nome do Paulo que estudou com você em 1999 e eles me passaram o nome do seu amigo. Tá aqui ó. Resolvi o mistério.”
“Puta que pariu!”
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Demorei mais de meia hora para reunir coragem e procurar o perfil do meu amigo nas redes sociais. Fingi que nada tinha acontecido; tentei trabalhar, conter as emoções que vinham em ondas, teimando em sair pelos olhos. Na barra de pesquisas, ao ver a fotinho minúscula, eu o reconheci imediatamente. Experimentei uma estranha euforia, uma felicidade impossível de ser contida: não conseguia parar de rir. No rosto adulto, enxerguei as mesmas feições, os mesmos traços do menino de vinte anos atrás. Ele estava bem, vivo, feliz. E isso me bastava. Era mais que suficiente. Eu não precisava de mais nada.
Pensei que seria melhor não tentar nenhum contato. O pensamento de surgir como uma sombra do passado, uma louca dizendo, “Oi, lembra de mim?”, fez com que me sentisse envergonhada, eufórica, ridícula, radiante, amedrontada, tudo ao mesmo tempo. O que dizer depois de duas décadas sem ver alguém? Eu não fazia ideia. Me senti amordaçada; as juntas dos meus dedos se paralisaram, meu maxilar travou e não deixava passar nem um fonema. As coisas têm a importância que damos a elas. E eu, com certeza, tinha dado importância demais à coisa toda. Independente da situação, sabia que faria papel de ridículo. Isso era uma certeza. Até então, a história da minha saudade tinha só um membro: eu mesma. Mesmo assim, decidi deixar o orgulho de lado e, antes de enviar uma mensagem, fiz um exercício mental: me convenci de que meu amigo não se lembrava de mim. Ou que, no máximo, tinha uma vaga lembrança. Afinal, ele tinha ido embora e eu tinha ficado. Imagino que, para quem vai embora, é sempre mais fácil esquecer.
A resposta veio logo. Estava tão preparada para receber uma indiferença educada que entrei em choque quando foi o contrário. Ele se lembrava de mim!?! Como assim tinha me procurado ao longo dos anos? Como assim se lembrava de “cada vírgula” que eu havia escrito no texto? Como assim se lembrava do meu nome e sobrenome? “Você não imagina quantas pessoas com o seu nome existem nesse mundo.” Naquele momento, Paulo deixou de ser o fantasma da minha infância e se tornou uma pessoa de verdade. A realidade da coisa me atingiu: eu havia reencontrado meu melhor amigo depois de vinte e três anos.
Uma explosão nuclear se deu dentro de mim. Um big bang que destruiu o depósito da minha mente, arrancou a porta das dobradiças, espalhou, tal qual uma avalanche, todo o conteúdo das minhas gavetas pelas paredes, pelo chão, pelo teto, brilhando como pó de estrela, pintando os cômodos dentro de mim de cores iridescentes, respingando no meu corpo, manchando minhas roupas. Rindo e chorando ao mesmo tempo, olhei ao redor, feliz e assustada:
“Ai, meu deus...Vai dar muito trabalho para organizar isso tudo...”.
Ah... amiga! A parte dois está destruidora mesmo. Você faz da vida uma literatura incrível.
:)